A vida já foi bem mais difícil para quem faz quase tudo com a mão esquerda. Mas os canhotos ainda se batem para desempenhar algumas tarefas básicas

Uma questão aparentemente superada voltou à tona no Congresso Nacional. Está para ser aprovada uma medida que obriga os colégios públicos de todo o país a reservar carteiras adequadas às necessidades dos alunos que escrevem com a mão esquerda. A ideia é tornar a escola “mais democrática e igual”, segundo o senador Augusto Botelho (PT-RR), relator do projeto – e pai de dois canhotos.

Política à parte, o fato é que apenas cerca de 10% da população mundial utiliza preferencialmente a mão esquerda. E como qualquer outra minoria, os canhotos têm dificuldade para se adaptar a um mundo que não foi planejado para eles. Nessa realidade invertida, os também chamados esquerdinos (ou ainda sinistromanos) travam verdadeiras batalhas contra tesouras, abridores de latas, réguas, saca-rolhas, cortadores de unha, maçanetas, acessórios de informática…

Mas a luta já foi mais inglória. Sabe-se que na Idade Média, durante a Inquisição, canhotos eram queimados vivos, acusados de praticar bruxaria. Tudo porque, de acordo com a Bíblia, as boas ovelhas ficam do lado direito do Deus Pai. Aliás, o próprio sinal da cruz só deve ser feito com a mão direita, a exemplo de outros rituais “puros” de culturas diversas.

No islamismo, por exemplo, não é de bom tom comer ou cumprimentar alguém com a esquerda – que, por sua vez, está reservada para as tarefas impuras, como a higiene pessoal. Entre os índios norte-americanos, a mão direita representa a coragem (e a outra, a morte). Até os distantes esquimós acreditam que os canhotos podem ser perigosos feiticeiros.

A herança dessa distinção pode ser percebida nas mais variadas línguas. Em francês, a palavra canhoto (“gauche”) é sinônimo de inepto, sem refinamento. “Sinistro”, em italiano, tem relação com algo de mau agouro, ameaçador. O adjetivo alemão “linkisch” também indica alguém desajeitado, maldito.

E nem precisa ir muito longe para reconhecer que o lado esquerdo é sempre visto de forma pejorativa. De acordo com o dicionário Aurélio, canhoto significa inábil, desastrado. Destro, ao contrário, é alguém dotado de destreza, agilidade, correção.

Felizmente, foi-se a época das fogueiras. Também não se força mais as crianças potencialmente canhotas a escrever com a outra mão, como era comum até pouco tempo. Graças aos estudos sobre a psicomotricidade, os esquerdinos passaram a ser aceitos e tratados de forma igualitária na sociedade. Há quem diga, inclusive, que a porcentagem de canhotos entre os grandes gênios da humanidade é bem maior do que a de destros.

Esse tipo de mito gerou um curioso efeito reverso. De renegados, os sinistromanos de plantão passaram a ter orgulho de sua condição. Pior: alguns chegam a adotar uma postura arrogante diante dos demais. Vide as inúmeras comunidades sobre o tema espalhadas pelo Orkut.

Da popularíssima “Canhoto é Superior” (com mais de 65 mil membros) à determinista “Ser Canhoto é um Dom de Deus”, a brasa sempre é puxada para o lado invertido da vida. E dá-lhe listas e mais listas de esquerdinos famosos e geniais – o assunto preferido de quem usa o mouse com a outra mão.

Mais contido, o administrador de empresas curitibano Norman Bitner é dono da comunidade “Mundo Canhoto”, surgida a partir de um site criado por ele em 2003 e que continua sendo o único do gênero no Brasil. Um de seus objetivos é justamente separar mitos e verdades.

Como a notícia, divulgada na década passada, de que os canhotos vivem cerca de nove anos a menos do que os destros. “Isso surgiu de uma pesquisa feita apenas na Califórnia. Era um universo muito pequeno, o equivalente a fazer um estudo somente no Paraná. A comunidade científica não aceita essa afirmação”, explica.

Em sua busca pela informação precisa, Norman chega a analisar minuciosamente imagens de supostos esquerdinos célebres. Recentemente, ele “desmascarou” Marilyn Monroe, sempre associada à categoria. “Era uma farsa. Encontrei no Google algumas fotos dela dando autógrafos com a mão direita”, conta.

O Mundo Canhoto (www.mundocanhoto.cjb.net) ainda traz artigos em diversos idiomas, fórum de discussão, testes para verificar o nível de “canhotismo” dos internautas e até uma série de assinaturas de celebridades da classe. Aliás, Norman também tem seus ídolos canhotos: Leonardo da Vinci e Ayrton Senna.

Ele só lamenta a falta de produtos específicos disponíveis no mercado. “Lá fora existem várias lojas para canhotos, mas aqui no Brasil não conheço nenhuma”, diz.

O que Norman não sabe é que perto da casa dele há, sim, uma loja para quem usa a mão esquerda. Trata-se da Rexsom, de instrumentos musicais, a única do país com uma sessão exclusiva para esquerdinos. Criada em 2005 por um destro, ela também opera na internet, recebendo encomendas de todo o Brasil.

Anderson Rodrigues, o dono, explica que os instrumentos de corda para canhotos são praticamente iguais aos convencionais – a diferença está em algumas peças, como tarrachas e pontes. No caso da bateria, o que muda é a posição do pedal, se este for duplo.

Ele ainda conta que a maioria dos vendedores costuma empurrar guitarras de destros para canhotos iniciantes. Os fabricantes, por sua vez, produzem poucas unidades especiais, e de qualidade inferior. Ao reservar entre 10 e 20% de seu estoque para os intrumentos exclusivos, a Rexsom virou referência e conquistou um público fiel dentro e fora de Curitiba. “Não encontramos concorrência no mercado. Nossa comunidade no Orkut cresceu sozinha, sem nenhum tipo de divulgação”, surpreende-se.

De olho na demanda, Anderson agora pretende desenvolver uma nova loja virtual, voltada para todo o tipo de produto para canhotos. Um negócio, literalmente, sinistro.

Em tempo: o repórter também é canhoto.

Omar Godoy
Equipe da Folha de Londrina

Publicado em 04/05/2009

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